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A Ética do Mercado


O escândalo das fraudes em licitações públicas, revelado pelo Fantástico no último domingo, deixou o Brasil perplexo. Zeca Camargo que o diga, terminou falando sozinho. Na segunda-feira, não se conversava sobre outro assunto. A roubalheira explícita talvez só tenha perdido espaço para o mico do apresentador. Tanto assombro é de se estranhar. Os representantes das empresas corruptas apenas aplicaram o famoso “jeitinho brasileiro” ao tentar roubar o dinheiro público. Agiram conforme a ética do mercado.

O espanto da população pode ser compreendido. O do poder público não.

Após a denúncia, a politicalha saiu da toca para gritar aos quatro ventos que iria fazer e acontecer. Congressistas querem criar agora uma CPI da Saúde, o prefeito do Rio de Janeiro mostra que tem pulso firme, outros clamam por leis mais rígidas. Um teatro de roteiro pobre e já conhecido.

O problema não está na falta de leis. Apesar de alguns advogados afirmarem que as imagens exibidas não contêm provas suficientes, o que se vê ali é uma ação ilegal. É resultado, mais uma vez, do descaso do poder público. O mecanismo de decisão de compra é administrativamente incompetente – o sujeito decide sozinho, como mostrou o repórter Eduardo Faustini. Não existe supervisão, checagem ou monitoramento.

É um circo. O pão acaba sempre nas mãos erradas.

Uma medida preventiva é submeter o processo à crítica e evitar que a decisão seja tomada por um grupo pequeno de pessoas. O que é responsabilidade do ministério do Planejamento. Mas aí, surge outro problema: como os companheiros de Brasília vão faturar sobre a desgraça alheia? O buraco é mais embaixo. Medidas devem ser tomadas respeitando a ética do mercado deles.

Se a rotina na compra de remédios em hospitais do Rio de Janeiro é esta, significa que o gasto tem sido de 10% a 20% maior. Quem paga a conta? Punir os culpados e não mudar a situação não adianta. Se quiserem, os donos das organizações envolvidas dão outro “jeitinho”, abrem novas empresas e continuam brincando com o dinheiro público. Acreditem: isso é permitido pela constituição.

Mas é como disseram nas gravações. Não estão errados. Apenas agem conforme a ética do mercado. Os que contestam acabam ficando como o Zeca Camargo no fim do Fantástico. Falando, falando, sem ninguém ouvir.

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