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Boteco Brasil

Entro no bar e me sento na primeira mesa vazia. Peço o de sempre, um chopp com a porção que é a especialidade da casa, enquanto observo ao redor. Há pouco movimento, é fim de noite. Sobra tempo para o Antônio, garçom e bom de papo, assistir à repercussão das manifestações pela televisão e filosofar em voz alta:

- Veja você, eles agora vão ter que fazer alguma coisa. O povo não agüenta mais esse governo de merda - reflete mais para si mesmo que para o resto do bar.

- Hum-hum, verdade - respondo para o vazio, enquanto me concentro na comida.

A atenção de Antônio é desviada por um sujeito que chega até o balcão.

- Me vê um uísque duplo, sem gelo.

Reconheço a voz, mas impossível saber de quem, já que o homem está de costas. O sujeito recolhe o copo, agradece o garçom e caminha até minha mesa, onde senta sem pedir licença. Conheço ele, mas não consigo me lembrar de onde. Vou fuçando todos os cantos escondidos do meu cérebro, enquanto me seguro para não demonstrar surpresa – é do escritório? É o cara do almoxarifado? Não, o cara do almoxarifado não usa barba. É do meu prédio? É algum parente distante? Será que é alguém famoso? Não, acho que não... Por um momento desisto de procurar. Àquela hora o cérebro já estava travando mais que a minha internet 3G. O sujeito puxa papo:

- Confesso que quando escrevi aquela música achei que ela ficaria ultrapassada rápido rápido e, veja só, em pleno 2015 ainda é usada em manifestação contra o governo. Que porra de país é esse, mermão?

Rá! Era isso! Que país é esse? É ele! Como não me lembrei antes? Mas não, não poderia ser. Renato Russo havia morrido em 95, 96, sei lá. Não poderia estar ali naquele momento no mesmo boteco que eu, tomando um uísque servido pelo Antônio. Deveria ser algum sósia, cover, ou só alguém parecido mesmo. Entornou o uísque em um só gole enquanto já acenava para Antônio repor.

- Você deve estar espantado, mas sim, sou eu mesmo. Renato Russo! Não resisti e vim ver de perto toda essa zorra de manifestação. Coisa linda! O PT chegou ao poder só pra roubar e agora chegou nossa vez de tirar essa gente de lá. Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro na nação! Escrevi no fim dos anos 70 e continua atual! Será que esse país não vai mudar nunca?

- Hum... – mais engasgo do que falo.

- Eu confesso que votei no Collor, e depois fiz minha parte, consegui ajudar a derrubá-lo. Pintei a cara e saí nas ruas. Agora no PT eu não votei, mas me solidarizo com quem votou. Vim pra fazer volume na manifestação, não agüentei ficar só assistindo. Subi no carro de som e cantei “Que País é Esse?” umas quarenta vezes, o povo todo em volta pensando que eu era um sósia de mim mesmo, achando o máximo. Me diverti pra caramba!

- Massa... – é o que consigo dizer.

- Marquei com o Agenor aqui, está atrasado, pra variar.

- Agenor?

- Isso. Aí está ele, chegou! Aqui, Caju! – Ele grita e acena para a porta, enquanto entra outro rapaz, de cabelos encaracolados, óculos escuros e um jeito marrento de andar. Vem caminhando na direção da mesa, quando se aproxima dá um beijo e um abraço apertado no Renato, toma um gole do uísque já servido e acena para Antônio:

- Companheiro, desce mais dois! – Tem o sotaque carregado do Rio de Janeiro.

- Companheiro não, companheiro pega mal hoje, Caju! É coisa dos petralhas! – Renato diz enquanto solta uma gargalhada. O tal Agenor ri também.

- E esse outro, quem é? Pergunta.

- Fe-felipe, tudo bem?

- Agenor ao seu dispor, prazer! Mas pode me chamar de Cazuza. Ou de Caju. Ou de psiu, como preferir. HAHAHA.

- Hum – engasgo de novo enquanto Cazuza já engata outra tese.

- O Brasil finalmente mostrou sua verdadeira cara hein, Renato! Porque vou te dizer uma coisa, enquanto a Dilma estiver no poder, esse será um país tribufu! HAHAHA

- Verdade, Caju! Mas vai durar pouco. Impeachment ou renúncia, só há as duas opções, o Brasil não agüenta mais. Você também foi na passeata em Brasília?

- Jamais! Cidade morta aquela! Fui pro Rio, Cidade Maravilhosa! Causei a maior sensação, o povo achou que eu estava fantasiado de mim mesmo, teve gente tirando foto e tudo. Quando peguei o microfone e rasguei a voz “Brasilll, mostra a sua cara! Quero ver quem paga, pra gente ficar assim!!” teve gente chorando. Fui até entrevistado por uma repórter da Globo News que nem reparou que eu era eu mesmo. Uma viagem!

- E será que agora vai?

- Renato, olha só. Mensalão, Petrolão, bolsa isso, bolsa aquilo, esse “namoro” com Cuba, Venezuela... Tudo tem limite! Eu mesmo cansei de dar entrevista elogiando o PT quando ele estava nascendo, aquela idéia toda do início, era lindo. Era diferente! Mas passou! Aquilo foi pura enganação. O PT só quis chegar ao poder pra fazer o que está fazendo. Roubar. Cadê o garçom, meu copo tá seco.

E meu chopp já estava quente. Então era isso? Eu estava no boteco de sempre ouvindo Renato Russo e Cazuza divagando sobre a situação política do País e defendendo a saída de Dilma do poder? Tinha que fotografar, mas onde estava o celular?

Enquanto a vinheta na televisão anunciava o fim do Fantástico, Renato e Cazuza faziam agora um dueto de Chico Buarque: “apesar de vocêêê, amanhã há se seeeeer ooooutro dia!”, já estavam bêbados.

- Só não chamo o Chico porque sabe como é, essa discussão ia dar briga! HAHAHA

- Agora vamos esperar os próximos acontecimentos, Caju. Dia 12 estaremos lá de novo! E você – nesse momento Renato virou-se pra mim – não conte pra ninguém o que se passou aqui hein. Se nos descobrirem vai ser fogo. O PT vai dizer que é esquema da oposição e vai sobrar pro Aécio, que não tem nada a ver com isso.

Os dois levantaram-se e quando iam saindo um terceiro sujeito entra no bar. Cabelos e barbas compridos, uma roupa branca, e óculos redondos na cara.

- Hey Guys. Sorry, I’m late.

- JOHN!!! - Os dois exclamaram juntos! Quando olhei, já puxavam outra cadeira e chamavam Antônio para abastecer os copos de uísque.

- Quer dizer que até tu, Mr. Lennon!? – Perguntou Cazuza, debochado.

- O negócio foi sério mesmo, então! Pra termos até um Beatle entre nós! - Emendou Renato.

- Oh Guys, imagine, imagine. – John Lennon achava que era o mínimo que poderia fazer.

Saí de fininho enquanto os três engatavam uma conversa animada sobre os rumos do Brasil e voltei pra casa, caminhando. Cheguei e me atirei no sofá, exausto. Adormeci antes de ver a cena repetida em um telejornal qualquer: milhões de brasileiros entoando juntos “Que País é Este?”, o coro sendo puxado por um rapaz de voz grave, que fazia uma dança muito particular em cima do carro de som.

No dia seguinte acordaria sem saber se tinha sido sonho. Na dúvida, guardaria segredo.

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