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Minha caneta vai pro fundo da gaveta

Como sempre, preciso escrever. Quando digo “preciso” significa mesmo uma necessidade e não um desejo banal. Sujar o papel com a tinta da caneta, para mim, é tão vital quanto puxar o ar para dentro dos pulmões. Deixá-lo de fazer reduz os dias que ainda restam. Todo escritor é, por natureza, um obcecado. Só sente o mundo escrevendo, escancara aquilo que calaria pelas palavras impressas, e, sobretudo, escreve para manter-se em pé. Pois é assim que tem de ser.

Dito isso, devo agora confessar: estou doente. Ou melhor, esse meu eu-escritor é que está. Não tenho dúvida de que a doença que o abateu é a pior que poderia enfrentar, pois tem como principal sintoma nada menos que a falta de assunto. Para ele, é como morrer! Não ter mais sobre o que escrever. Não ter um tema que desperte interesse e inspiração suficientes para desenvolver pensamento particular que valha a pena ser compartilhado. Sua inspiração voou para longe ou o mundo é que em um instante ficou vulgar e desinteressante demais.

Tenho tentado convencê-lo de que a doença é curável, de que a inspiração dará o ar de sua graça quando menos se esperar, pois é essa sua natureza. Hoje, depois de um bom tempo, finalmente consegui tirar meu eu-escritor da cama, estava com a aparência um pouco melhor e seu olhar curioso de poeta buscando identificar os detalhes de cada coisa. Todo poeta é, antes de tudo, um curioso! A doença parece ter dado uma trégua, mas agora apesar de não lhe faltar assunto o que ele perdeu foi o interesse em colocar seus pensamentos no papel. E me deu suas razões.

Hoje há um excesso de informação e opinião para onde quer que você olhe. O fenômeno das redes sociais criou nas pessoas uma necessidade intensa de compartilharem suas opiniões sobre tudo. Sobre tudo mesmo! Alguém importante espirrou do outro lado do mundo, o cachorro da atriz revelação morreu, o casal de artistas que parecia inseparável se separou, tudo isso é motivo para correrem para o computador ou para o celular e postarem suas opiniões. Em geral, tem aqueles que lamentam o fato, aqueles que lamentam o fato de existirem aqueles que lamentam o fato, aqueles que questionam a razão de todos estarem falando sobre aquele fato, e por aí vai. O que não se pode é ficar de fora e tentar sempre ser original em suas críticas!

Acho ótimo que se tenha um espaço livre para o debate. Para mim, é democrático e enriquecedor. O Facebook é a mesa de bar virtual! O que o torna pobre e banal é o fato de as pessoas enxergarem em um post a oportunidade de criarem uma imagem diferente da real. A rede social passou a ser um lugar onde finalmente se pode parecer o que não é e os outros dificilmente descobrirão a farsa.

Outro defeito é que nesse diálogo todos buscam somente ter razão. Na verdade, não existe diálogo. É resultado também do que vemos fora da tela do computador. Em casa, no trabalho, nas ruas ou mesmo na mesa de bar, raramente se tem uma conversa onde todos estão desarmados e abertos, dispostos a ouvir e a enriquecer a alma com o que o outro tem a oferecer. Em geral, todos estão preocupados em demonstrarem inteligência, parecerem descolados ou exibirem suas conclusões geniais acerca dos últimos fatos. Ao menor sinal de distração do nosso interlocutor, uma oportunidade qualquer como uma pausa para o outro respirar, aproveitamos para colocar pra fora o que temos pra contar. Não existe diálogo, e sim monólogos revezados. Sintoma da falta de tempo que agride o mundo. Voltando às redes sociais, se eu falo o que penso e um outro defende algo diferente, não discuto. Tento ridicularizar o que considero como meu “rival”. Qualquer tema se torna razão de disputa e embate. E o mais irônico é que as pessoas que conversam ali se chamam de “amigos”!

Por isso que escrever e tirar da gaveta nesses dias parece totalmente desnecessário. Penso que ao compartilhar um pensamento, ou me julgarão prepotente ou procurarão uma contradição entre as linhas para me apontar o dedo ou acharão que estou fazendo de conta ou arrumarão uma desculpa qualquer para criticar o que disse e parecerem mais inteligentes do que eu. Ou a hipótese mais provável de todas: ignorarão por completo a minha tese, pois são tantas opiniões jogadas ao vento que ninguém tem tempo ou interesse em acompanhar todas elas.

Por tudo isso, cheguei a pensar em aposentar meu eu-escritor. E jogar seus textos todos para dentro da gaveta. Mas isso seria o mesmo que sufocá-lo até a morte, como disse no início desse texto. Na falta de assunto, vou orientá-lo a escrever sobre o amor. Pois sobre esse tema quase ninguém mais escreve e dificilmente será o centro de uma discussão polêmica. Então é isso! Até esse tempo esquisito passar, vou guardar minhas impressões sobre o mundo e falar só sobre o amor.

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