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As ruas daqui e as ruas de lá

Aqui no Canadá voltei a caminhar. Não exatamente por exercício físico nem para me manter ativo. Nada disso. Voltei a fazer das minhas pernas meu principal meio de transporte.

Olho no mapa. Se o local onde preciso ir está a menos de cinco quilômetros de distância, calço as botas e me lanço nas calçadas cobertas de gelo. Só se for muito mais distante que isso que recorro ao transporte público. Hoje, por exemplo, caminhei treze quadras para ir e treze quadras para voltar do meu destino. Estava um clima agradável mais cedo, chegou a fazer 5º, eu acho, então cumpri a tarefa sem maiores apertos.

Isso é outra coisa curiosa. Tenho observado que o corpo se adapta rápido ao seu novo ambiente. Até pouco tempo, residindo em uma das cidades mais quentes do Brasil, com 5º provavelmente eu estaria usando todo meu estoque de casacos e não sairia de dentro da coberta, se tivesse escolha. Aqui, onde no inverno as temperaturas normalmente estão abaixo de zero e não raro atingem -30, 5º graus é quase verão. É verdade. O corpo realmente sente isso. Mas estou desviando o assunto.

Ir de um lugar para outro caminhando e fazer disso uma rotina me fez lembrar a infância, é isso que quero contar.

Recordo o caminho exato até uma das escolas em que estudei. Morava relativamente perto, uns quinze minutos a passos médios. Saía de casa à esquerda, virava à direita, depois à direita de novo e ia embora. Algumas quadras depois, à esquerda de novo e já estava na rua da escola. Fazia esse caminho a pé quase sempre.

Lembro também de outra época, em que costumava ir com uma das minhas irmãs de bicicleta até outra escola em que estudei. O maior perigo era quando chovia e as ruas, que eram de terra, viravam um lamaçal só. Eu não guiava muito bem, então não era incomum eu perder o controle, esbarrar em algum obstáculo invisível e cair. Quando encontrava um mar de lama lá embaixo, o estrago era imenso. Você pode imaginar o que acontecia com o uniforme branco. Outro risco, naturalmente, eram os carros. Não sei como passei ileso por esse período, sem sofrer um acidente pior, porque realmente guiava mal.

Com o passar dos anos, fui deixando esse hábito de lado, assim como tantos outros brasileiros. Pelas histórias dos jornais, pelas conversas com os vizinhos, o medo de sair a pé em uma grande cidade brasileira, é totalmente embasado. Se você não conhece alguém que foi assaltado nos últimos meses, é um privilegiado. O descaso do governo com a segurança pública não nos tirou a liberdade de ir e vir, nos tirou a liberdade de ir e vir sem medo. Porque você até se arrisca, mas não usa celular em público, evita determinadas regiões e horários e, claro, sente medo enquanto está exposto. A violência no Brasil nos obriga a sermos paranoicos.

Infelizmente, é assim. No lugar de onde eu venho e que chamo de casa dificilmente faria o que faço aqui. Uma coisa simples e prazerosa, e que deveria ser um direito básico. Hoje pensei em tudo isso enquanto caminhava. Justamente porque, ao caminhar sem paranoia, meus pensamentos tomam formas e viajo, vou pra onde Deus quiser... como diz a canção. Canção que, aliás, eu adorava escutar quando era criança.

As ruas daqui, pra mim, têm gosto de infância.

Comentários

  1. Ótimo texto!
    Também lembro do caminho da minha escola na infância ;)

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  2. Eu me mudei de Salvador para Maceió e aqui não tenho carro, mas não faz muita falta. Dá para fazer muita coisa a pé ou de ônibus. Em Salvador é muito assustador andar a pé ou de ônibus porque o perigo é real, não é paranóia. Em Maceió o risco é menor. O problema é o calor. 7h da manhã o sol já está quente, muito quente. A gente fica meio prostrada no calor, só dá vontade de estar dentro d'água. Ainda bem que o mar é logo ali.

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  3. Felipe, adicione ao texto sobre "Morar no no exterior " o sofrimento para quem permanece muito tempo fora do país e retorna. Este, acaba sofrendo do "bairrismo", praticado por muitos, e a nítida sensação em ser o mais completo estanho em sua terra natal.

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