No filme O Regresso, aquele que ficou famoso pela cena do urso devorando o Leonardo di Caprio, tem outra cena em que o personagem de Leo observa uma avalanche descendo de uma montanha distante. Tenho duas curiosidades sobre essa passagem. A primeira é que o diretor do longa, o mexicano Alejandro Gonzáles Iñarritu, criou a avalanche de verdade para gravar a cena, ao invés de produzi-la em estúdio com efeitos especiais. Usando alguns explosivos ele fez um mundo de neve despencar montanha abaixo, tornando a cena bem mais realista e... perigosa, talvez. A segunda curiosidade é que a montanha em questão fica bem aqui, no quintal da minha casa. Ou quase isso. Calgary se localiza na província de Alberta, na região das Montanhas Rochosas do Canadá. A tal cena foi gravada na Fortress Mountain, na mesma província onde atualmente habito. Agora me ocorre outro pensamento. O Regresso, justamente esse filme que teve algumas cenas gravadas em Alberta, deu o primeiro Oscar de melhor ator ao Di Caprio, encerrando o famoso jejum. Menos de um ano depois da premiação, me encontro vivendo aqui. O que isso significa?
Com certeza nada.
Continuando, então.
Apesar de poder avistá-las da cidade, ainda não tive oportunidade de conhecer as tais montanhas. Dizem que a paisagem é de tirar o fôlego. Mesmo assim, sem conhecê-las, já tenho ideia de seu valor. Pelo que me explicaram alguns canadenses, é de lá que sopra um vento chamado de “Chinook”. Um vento salvador, podemos dizer. Seu nome deriva de uma palavra na língua da tribo indígena Chehalis e seu significado seria algo como “comedor de neve”. E é uma excelente definição: vento comedor de neve. É mais ou menos isso mesmo que ele é.
Algumas vezes, durante o rigoroso inverno daqui, o tal vento aparece para aliviar um pouco o frio. Li que, em uma hora, a temperatura pode ser elevada em até 5º, algo assim. É exatamente o que vem acontecendo nas últimas semanas. Ontem, por exemplo, o termômetro passou dos dez graus positivos. Ou seja, inverno a la Brasil. Um alívio e tanto para quem estava enfrentando temperaturas próximas ao – 20º. Inclusive boa parte da neve aqui na frente de casa derreteu.
Já posso dizer que tenho um grande amigo aqui em Calgary: o tal do Chinook.
Assim que ouvi alguns canadenses me explicando o fenômeno do vento comedor de neve e apontando ele como responsável pelo fato de o inverno de Calgary ser mais suportável do que em outras regiões do Canadá, me peguei pensando nele como uma excelente metáfora da vida. Acho que todos nós deveríamos estocar um pouco desse vento, como diria uma amiga nossa. Para nos aquecer durante os rigorosos invernos que a vida nos apresenta.
Se o relacionamento deu uma esfriada, se não encontra motivação no trabalho, se a cidade em que vive parece não ter mais nada para oferecer, se nada na TV lhe prende atenção, se a vida está um tédio, use um pouco do vento para aquecê-la. Se está passando por uma fase mais difícil, uma separação, a perda de um ente querido, um problema financeiro, recorra ao vento. O vento pode ser o que você quiser e, na verdade, só você sabe o que ele deve ser. Um jantar especial com sua esposa, um projeto novo no trabalho, uma mudança de cidade, o renascimento daquele plano distante do qual você tinha desistido, uma viagem, uma visita aos seus pais, um passeio com seu irmão, um trabalho voluntário, um novo curso. Pode ser tudo, enfim. Às vezes a vida parece ser um inverno interminável e o que nos resta é aproveitar o vento quente que não precisa vir das montanhas. Nós mesmos podemos soprá-lo.
Afinal, no tédio da vida também é possível haver poesia. No inverno também pode existir verão.
Exatamente isso: estou soprando meu próprio Chinook. O meu é comedor de areia! Para dar uma refrescada! Uma lufada de ar fresco nesse calor infernal que faz aqui. Adorei a metáfora.
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