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Gonzaguinha, o cantor das minhas estradas


Hoje Gonzaguinha completaria 80 anos. Se, aos 45, seu carro não tivesse colidido com um caminhão, e ele não tivesse morrido na estrada, entre shows. 

É um dos meus favoritos de todos os tempos. E vai além de suas canções. Sua persona sempre me foi marcante, e ele faz parte da minha formação — não só musical, mas como ser humano. Por me ajudar a entender a mim mesmo. Este é meu testemunho. E minha declaração a um dos maiores artistas que o Brasil já viu.

Suas canções, para mim, têm gosto de estrada. De terra vermelha. Daquele Brasil raiz, profundo, escondido, sofrido. Eu fui criado viajando de carro pra lá e pra cá, com mais crianças do que cintos de segurança no banco de trás. Outros tempos. Essa lembrança ficou em mim. Sempre amei a estrada: sair antes do amanhecer e viajar o dia todinho, cuidando das paisagens, parando para tomar um café de vez em quando. A experiência do deslocamento sendo mais significativa do que a chegada ao destino. Viajar de carro no Brasil, pra mim, é voltar à infância. E comigo carreguei esse gosto pela estrada, vida afora. Gonzaguinha sempre foi a melhor trilha para esses momentos.

Principalmente por poder voltar
A todos os lugares onde já cheguei
Pois lá deixei um prato de comida
Um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar

Para esses caminhos, especialmente o disco Coisa Mais Maior de Grande - Pessoa sempre caiu muito bem. Sem dúvida, é um dos álbuns da minha vida. A trilha sonora das estradas que eu percorro — e que correm em mim.

O artista também cantou o amor como poucos. Sua intensidade era genuína. Diferente de compositores que funcionam mais como fábricas de canções, inventando histórias de forma distante e calculada, ele não — colocava pra fora aquilo que não dava mais pra segurar. Explodia o seu e os nossos corações.

Ao som desse bolero
Vida, vamos nós e não estamos sós
Veja, meu bem, a orquestra nos espera
Por favor, mais uma vez, recomeçar

Da mesma forma que afagava, suas músicas também poderiam ser um murro na mesa. Era politizado, desconfiado e tinha fama de ranzinza em certo nível. Incomodou a ditadura. Apontou o dedo para injustiças sociais usando canções.

Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado

Falava da pessoa. Algo tão em falta. A pessoa como sendo a coisa mais maior de grande. Do mergulho em outros corações, do encontro de almas. Está tudo lá - tudo que me sobra ou me falta.

Só sinto no ar o momento em que o copo está cheio
E que já não dá mais pra engolir

Gonzaguinha é a estrada, o moleque que ama de forma passional e que dá um tapa na cara do dito sistema. Que desconfia de todos, mas se entrega à vida de forma tão intensa que, mesmo morrendo, não morre. É um artista mais vivo que muito artista vivo do Brasil.

Ele uma vez pediu para que a gente o ajudasse a nunca perder aquela sujeira da sua simplicidade.

É isso que continuo buscando todos os dias, Gonzaguinha: não deixar que o mundo me roube a sujeira da minha simplicidade. E você é das coisas que me mantêm aqui, nesse lugar. Lembrando e sentindo somente o que faz sentido.

Viva seus 80 anos!

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